Reflexões: O Generalista Paidéia – um profissional em Defesa da Vida
Roberto Mardem
Busca-se em todo mundo superar uma das crises da medicina, o afastamento do médico da pessoa sob seu cuidado (a desumanização do atendimento), apontado por inúmeros pesquisadores como o responsável pela perda de eficácia da clínica. À medida que houve avanços consideráveis do conhecimento médico e, principalmente, o desenvolvimento de técnicas e equipamentos capazes de escarafunchar o mais recôndito espaço das pessoas, foi-se perdendo a capacidade de interação entre pessoas concretas, do médico com cada paciente e sua história e o seu singular modo de caminhar na vida. Supervaloriza-se os meios de trabalho, numa falsa expectativa que haja um dia uma máquina pelo qual se possa passar o indivíduo e dela já sair com diagnóstico e terapêutica prontos. A medicina, vista como arte e ciência, poderia, enfim, tornar-se só ciência e os médicos técnicos em diagnóstico e terapêutica cuja função nuclear seria a de operar máquinas cada vez mais complexas.
Pode-se pensar que na atenção básica se dá de modo diferente, haja vista que neste espaço pouco se usa da tecnologia dura. Contudo, não é isto que se observa. Boa parte dos profissionais que aí atuam encaram a consulta (um meio, dentre outros para produção de saúde) como um fim: faz-se uma boa consulta, produz-se o diagnóstico correto e propõe-se a terapêutica adequada segundo as últimas evidências clínicas. Pronto – aí se encerraria a sua responsabilidade. Não é seu problema se o paciente fez uso ou não da medicação, mudou ou não o seu hábito de vida, se está recuperado ou curado. Afinal, a consulta foi longa e estabeleceu-se um "vínculo"...Foi examinado integralmente, "do fio do cabelo ao dedão do pé". Esquecem que o vínculo é longitudinal, dá-se ao longo do tempo, de maneira muito semelhante proposta para o casamento: na alegria e na tristeza, na saúde e na doença.
Explica-se esta postura muito pela formação até hoje imposta aos profissionais de saúde, o modelo biomédico. Concebe-se o ser humano como uma máquina constituída por partes, algumas muito pequenas – as moléculas - todas elas interagindo entre si. A saúde é, portanto, o bom funcionamento da máquina e a doença, por contraposição, a avaria de qualquer uma das partes, ainda que na menor delas, moleculares. Para os cientistas, a estrutura genética é a única responsável pela determinação das características desta máquina. Assim, por esta concepção, saúde é a ausência de doença. A doença, por sua vez toma uma dimensão ontológica como se fosse um ser que invadisse o corpo e avariasse a máquina. A terapêutica, portanto, transforma-se num ato neutro de lutar contra a doença, retirá-la do corpo, restituindo-o ao estado anterior, curando-o. Não é à toa, que se diz que o tratamento quando bom é como "tirar com a mão".
Sabemos, ainda que intuitivamente, que não é assim.
Saúde, tampouco, é o completo bem estar físico e mental proposto pela Organização Mundial de Saúde. É indiscutível que o conceito de saúde deva estar interligado ao de bem estar, porém, faz-se necessário contextualizá-lo de acordo com as condições históricas de cada sociedade (haja complexidade para a definição de bem estar, particularmente neste mundo globalizado...). Saúde, olhada por este ângulo, inclui condições de vida dignas (lazer, transporte, moradia, emprego, etc) de acordo com as condições históricas que cada sociedade alcançou ou pode alcançar.
Saúde é ainda mais. É fruto da sociabilidade, da afetividade, da subjetividade, da organização da vida cotidiana, das relações com o território e com o meio ambiente (da experiência social, individualizado em cada sentir e vivenciado num corpo que também é biológico).
Produzir saúde, portanto, significa interferir em todos essas causalidades e dimensões.
Está intimamente ligado à garantia de acesso à moradia, trabalho, lazer, salários dignos, cultura, enfim, à solidariedade social que garantam condições dignas de vida a sujeitos plenos de direitos. No caso do Brasil, inclusive de Campinas, uma das maneiras de se produzir saúde é fazer o enfrentamento de algumas questões cruciais: a pobreza, o desemprego, a deterioração ambiental, hábitos inadequados de vida produzidos pelo desenvolvimento e urbanização, o envelhecimento da população, a violência, particularmente a de gênero e a contra a criança, etc. É necessário, através de atuações intersetoriais e do estabelecimento de parcerias com instituições públicas e privadas, desenvolver estratégias de promoção de saúde e intervir nos condicionantes sociais e de classe que produzem doença.
Tudo isto, embora necessário, ainda é insuficiente para a produção de saúde. Gastão nos instiga perguntando-nos como produzir saúde para "sujeitos portadores de qualquer enfermidade sem considerar também o combate a semelhante enfermidade? (...)Nem a antidialética positivista da medicina que fica com a doença descartando-se de qualquer responsabilidade pela história dos Sujeitos concretos, nem a revolta ao outro extremo: a doença entre parênteses, como se não existisse, quando, na verdade, ela está lá, no corpo, todo o tempo, fazendo barulho, desmanchando o silêncio dos órgãos. A doença está lá, dependendo dos médicos e da medicina, é verdade, mas também independente da medicina: dependente da vontade de viver das pessoas, com certeza, mas também independente da vontade dos Sujeitos. Está lá, simplesmente, como processo humano de nascer, crescer, gastar a vida, minguar e morrer.Então, pôr a doença entre parênteses,sim, mas apenas para permitir a reentrada em cena do paciente, do sujeito enfermo, mas, em seguida (...), sem descartar o doente e o seu contexto, voltar o olhar também para a doença do doente concreto. Senão qual especificidade teriam os serviços ou os profissionais de saúde?" * Há que se cuidar, portanto, também do biológico. Usar racionalmente toda a tecnologia posta à disposição da humanidade, utilizando-se dos conhecimentos científicos baseados na evidência que sugerem os melhores esquemas de tratamento.
* Campos, Gastão Wagner - Saúde Paidéia. São Paulo – Ed. Hucitec
E, finalmente para se fechar o ciclo da produção de saúde, é importante se lembrar que cada paciente é único e singular. Cada um vive a sua doença de forma exclusiva, circunstanciada pela sua cultura, condições sócio econômicas, consciência sanitária, enfim, o seu caminhar na vida. Fazer clínica e produzir saúde para indivíduos em sofrimento é um ato de busca da integralidade de um sujeito singular, cultural e socialmente determinado.
Diante da complexidade de tal conceito, intimamente ligados aos de equidade, integralidade, justiça social, fica clara a impossibilidade de qualquer profissional, isoladamente, assumir a tarefa de produzir saúde. Esta é, então, uma tarefa intersetorial, multiprofissional e transdiciplinar, sem, entretanto, abrir mão do papel, do potencial e das especificidades do núcleo de cada profissional de saúde e da própria política setorial.
O projeto Paidéia ousa enfrentar tais complexidades. Sustenta-se em alguns pilares, um dos quais, da maior importância, é o Vínculo, entendido como instrumento terapêutico potente. Portanto, quando se fala em humanização dos serviços e das práticas, enfim, em vínculo, não se está buscando apenas a satisfação do usuário e, quiçá, do profissional da saúde. Busca-se, na verdade, uma relação de compromisso entre pessoas (uma, o profissional ou profissionais, e outra, o usuário ou usuários), sem a qual a clínica de qualidade não se completa. Vários estudos têm demonstrado que sem isto, a maior parte dos pacientes, principalmente aqueles com patologias crônicas não aderem aos tratamentos propostos, não mudam hábitos deletérios, não retornam às consultas agendadas e assim por diante.
No Paidéia estamos propondo que o Vínculo se estabeleça entre cada profissional de saúde e cada usuário a ele adscrito. Mas, mais que isto, que se estabeleça entre uma Equipe de Referência e cada um dos usuários. Buscamos que cada Equipe se comprometa com a saúde de cada cidadão, da sua família e da coletividade onde ambos – Equipe e usuário – estejam situados.De outro lado, espera-se do usuário e da sua família o desejo de ser ajudado.
Na equipe destacam-se 2 profissionais com caráter de generalista - o médico(a) e o enfermeiro(a). Junto com todos os outros, serão responsáveis por uma população a eles adscrita e tem como principais tarefas: a) o atendimento clínico ao cidadão e sua família, apoiados matricialmente por outros especialistas sempre que necessário (particularmente por pediatras, ginecologistas, profissionais da saúde mental e fisioterapeutas, participando dos projetos terapêuticos dos usuários sob seu cuidado quando pertinente); b)referenciar para outros níveis do sistema todos os casos que não possam ter o problema resolvido na atenção básica; c) desenvolver ações de saúde coletiva, tais como ações de educação em saúde, vigilância epidemiológica e sanitária, estratégias de promoção da saúde; d) articular ações intersetoriais na território de sua atuação; e) interagir com os usuários e suas famílias, ajudando-os a refletir sobre o contexto sócio-cultural, ampliando-lhes a autonomia para caminhar na vida com as próprias pernas; f) Participar da realização dos projetos terapêuticos dos pacientes de maior risco e famílias da sua equipe e gerenciar a sua realização.
Além da Unidade de Saúde, desenvolverão ações na comunidade, nas escolas, outras instituições coletivas e nos domicílios.
É necessário, portanto, que estes profissionais incorporem à sua bagagem clínica o saber epidemiológico, de educação em saúde, de trabalho em grupo, de gestão e conhecimentos sobre risco e vulnerabilidade que os ajudem na articulação de projetos de intervenção individual e coletiva.
Espera-se, particularmente do Médico Generalista, que, do lado da clínica, conheça as principais patologias que acometam os adultos, idosos, crianças, adolescentes e mulheres e que sejam capazes de realizar puericultura e pré-natal normal ou de baixo risco.
As visitas aos domicílios não devem ser só para atender acamados ou pacientes com dificuldade de se locomover até a Unidade de Saúde. É importante que periodicamente se faça visitas às famílias mais vulneráveis ou de maior risco biológico, cultural ou sócio econômico por considerar que no ambiente doméstico manifestam-se vários condicionantes do adoecer e, portanto, conhecê-los in loco facilita a interação e a intervenção para produzir saúde. Deve-se, portanto, inclui-las nos vários projetos terapêuticos. Espera-se, então, que o médico generalista participe de todos eles, mesmo se o paciente não foi diretamente atendido por ele (por exemplo, participar do projeto terapêutico de uma criança, ainda que esta tenha sido atendido pelo pediatra).
O seu perfil é de um profissional com sólida formação clínica, atuando em todos os ciclos de vida dos cidadãos, mas, por causa das condições demográficas e epidemiológicas de Campinas, que conheça com mais profundidade as doenças que acometem adultos e idosos; deve ter interesse e compromisso com as questões sociais; é importante que tenha sólidos conhecimentos sobre grupalidade, relações humanas e familiares; espera-se que tenha iniciativa, seja dinâmico e com capacidade de trabalho em equipe multidisciplinar, sem achar que a equipe trabalha para ele; que seja capaz de gerenciar adequadamente o tempo e que seja flexível; é importante que tenha capacidade de lidar com situações de frustração e stress e consiga trabalhar em áreas de risco social. É importante uma boa capacidade de comunicação e que saiba improvisar.
Não se é generalista porque atende genericamente crianças, mulheres e adultos ou porque conhece generalidades da clínica.
O generalista também não é o velho médico de família, o médico de cabeceira, que com sua maleta ia até a casa dos seus pacientes prestar-lhe assistência em casa. Não é, portanto, como alguns saudosistas afirmam, o retorno ao passado embora deste passado romântico aproveite-se o vínculo com toda a família.
Este médico trabalhava sozinho, mantinha uma relação pretensamente neutra e onipotente sobre os seus pacientes e organizavam seus processos de trabalho com o mesmo modelo biologicista que hoje usamos nos nossos consultórios. Não por acaso tornavam-se, nas cidades do interior do Brasil, figuras VIPs, muitos fazendo carreira política.
Generalista, portanto, é o profissional que cuida do espaço geral, que além da clínica ampliada, tenha vínculo com o território e seja capaz de promover atuações intersetoriais e desenvolver ações de prevenção e de promoção de saúde. Na Equipe, contribui para somar as partes, é capaz de produzir o todo, operando com o novo paradigma de saúde e doença.
Por outro lado, espera-se de todos os profissionais da Equipe (não só do generalista) a capacidade de fazer clínica ampliada, estabelecendo-se vínculos com cada um de seus pacientes, ampliando-se o objeto da sua intervenção da doença para sujeitos doentes ou em risco de adoecer e ampliando os meios de intervenção – consulta, educação em saúde, grupos, etc.
Espera-se que o ginecologista e o pediatra também atendam adultos, sempre que possível e necessário, contribuindo para permitir a atuação adequada do generalista.
O Generalista como Gestor do Cuidado:
O médico (e o enfermeiro) generalista deve conhecer todas as famílias sob cuidado da equipe, buscando estabelecer vínculos singulares com todas elas. Deve selecionar, através da discriminação de risco, as mais vulneráveis e com elas estabelecer vínculos mais estreitos.
Deve acompanhar cada paciente sob seu cuidado na saúde e na doença, considerando a sua família, a vida social, a sua cultura e o seu trabalho.
Cada vez que encaminhar um paciente ao especialista, não o transfere definitivamente, mas continua gerenciando (em co-gestão com o próprio paciente) a sua saúde. Assim, deve ter parte de seus retornos na própria unidade básica. Espera-se que, muitas vezes, ao invés de encaminhar o paciente ao especialista, que o generalista o consulte pelos meios possíveis (telefone, e-mail, etc), ampliando o seu conhecimento sobre determinada patologia e como cuidar de um seu determinado paciente.
Outra capacidade esperada do generalista é a de fazer diagnóstico comunitário e epidemiológico de uma dada situação. Deve ser capaz, ainda, de entender as relações de causa e efeito entre o trabalho e adoecimento nos casos particulares das doenças do trabalho e contribuir para a vigilância destes ambientes.
Roberto Mardem Soares Farias é médico sanitarista e diretor municipal de Saúde de Campinas
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