sábado, 8 de outubro de 2011

Conto – " A Vacina"

(É muito divertido, vale a pena ler)

(...)

Zé, você precisa ir ao Posto de Saúde do Estado, lá no Bom Retiro, para retirar 500 doses da vacina anotada neste pedido. A partir de amanhã, o Departamento Médico vai aplicá-las nos funcionários.

Antes de zarpar, o Zé passa no banheiro, penteia os cabelos e aplica boa dose de desodorante nas axilas. Todo garrido e lampeiro vai até o nono andar, de onde toma o elevador e parte enlevado para a sua missão... Ele sempre zanzeia nessas paragens por ditames do coração... Segue pela Dom José de Barros, em direção ao Largo do Paissandu. Assobia e gira com maestria no indicador da mão direita sua velha e ensebada pasta de cartolina que, lançada ao ar, é equilibrada no “fura-bolo” da mão esquerda. No Paissandu toma o ônibus com destino ao Bom Retiro.

Chega ao posto de saúde onde inúmeros cartazes coloridos afixados por todas as paredes do antigo casarão amarelo, prendem-lhe os sentidos. Anúncios em letras graúdas sempre tocam a sensibilidade do Zé. Os que agora lê convidam-no a se vacinar contra a paralisia infantil, poliomielite, varíola, meningite, febre amarela e toda corriola de mazelas que ferem fundo o altivo animal chamado homem. Um desses letreiros golpeia fortemente o garoto, pois anuncia: “Vacine-se contra o tétano”, e mostra a figura de um horripilante monstrinho redondo, peludo, com cara de pérfido, fugindo em desespero de uma gota da vacina pronta a submergi-lo. O Zé matuta:

Caramba, eu vivo me azarando, me estropiando...

Lembra-se de recentes acontecimentos: murro no olho esquerdo ao findar o jogo de domingo na várzea do Itaim; dedão do pé semi-arrancado ao chutar descalço um paralelepípedo na pelada com uma tampinha de cerveja, lá na esquina da padaria. Conclui, então, necessitar da tal anti-titânica.

Dirige-se à recepcionista de plantão:

Dona, quero me vacinar contra o tétano!

Após um marasmo interrogativo – idade, peso, doenças que teve, vacinas que tomou, alergias... –, com as respostas anotadas num vetusto prontuário, ritual que o Zé reputou bestial perda de tempo para algo tão simples como tomar um copo de água, a senhora pede-lhe que se dirija à sala de aplicações. Resignado com tamanha burocracia, superior às suas forças, vai a passos despreocupados ao local indicado, ali mesmo no andar térreo.

É recebido sem entusiasmo pela gorda enfermeira, mulata de ar severo, doidinha por resolver de bate-pronto o encargo e voltar à revista interrompida com a chegada daquele pirralho magro e ossudo. Sem palavras de boas-vindas, lê carrancuda o prontuário e diz:

Tire a camisa.

Pudico em expor seu pobre esqueleto diante das demais enfermeiras que permanecem lendo revistas ou fazendo tricô, o Zé sugere:

Dona, não dá só pra arregaçá a manga?

Ande logo fedelho que não tenho tempo; tire a camisa.

Tira, mas resmunga por dentro:

Baita gente complicada... cansado de ver aplicar vacina no ombro com a manga arregaçada.

Pois é, como faz tempo que não se vacina, o Zé julga que a aplicação é feita com aquele tubinho de vidro semelhante a um palito de dente com o qual viu cutucarem há tempos na televisão o ombro de um vacinado; ou à base de revólver de aplicação, gotas, ou qualquer método mais simples.

Sem camisa, arrepia-se feito frango molhado com a lufada de um vento friinho que veio bisbilhotar desde um gélido pátio amortalhado com permanente sombra.

De olhar curioso, atento aos movimentos da enfermeira, o Zé a vê dirigir-se a um armário estranho parecido com uma barrica de metal, abrir a tampa e desentranhar aquilo que mais teme na vida, depois da matemática: seringa de injeção!

Barbaridade! – grita, retrocedendo um passo. Acho que esse troço não é pra mim, não!!

Inspeciona ao redor e conclui ser ele a única vítima para o abate. Não teve, o azarado Zé, a sorte do afortunado Isaac, lá no Velho Testamento, que foi substituído por um cabrito.

Pálido, mudo, sem forças para reagir, segue atônito o seguro ritual da algoz, que agora abre uma paleolítica geladeira cor branco-cadáver e retira dois frascos de vidro com tampa de borracha, por onde introduz a terrificante agulha da seringa (para o Zé, prego de peroba). Suga lentamente todo líquido do primeiro frasco, que é lançando vazio num macabro e hospitalar cesto de lixo com pedal; esvazia o segundo recipiente e o mantém espetado na ponta da agulha para protegê-la dos males da atmosfera. Vem na direção do moleque com as duas mãos erguidas à altura da cabeça, trazendo numa delas a seringa – punhal – cheia de um pastoso líquido esbranquiçado, e na outra um chumaço de algodão embebido em éter.

Estarrecido, fixos os olhos nos instrumentos de morte, o moleque recua, sendo interceptado pela parede. Pensa fugir, mas a porta e a janela encontram-se atrás da enfermeira, e são alcançáveis apenas passando por cima do cadáver dela. Petrifica-se o Zé. A gorda senhora lança-se resoluta sobre a presa, mantendo agora na mão esquerda a seringa e o algodão, deixando livre a direita que, feito gadanho de ferro, prende o braço do moleque como quem aperta um magro caniço de bambu. Esfrega o éter no ponto da aplicação e o forte odor do líquido asséptico penetra nas narinas do pirralho e põe-lhe tudo a rodar, desbobinando de sua imaginação sangrentas cenas hospitalares: tripas de fora, bisturis, poças de sangue e tudo mais que faz trepidar qualquer garoto com boa saúde, pouco acostumado a coisas tão incômodas como essas.

Surge o inesperado! Caiu! Caiu Babilônia, a grande! O Zé desmaiou de pavor!!! Sim, de pa-vor! O bravo Zé, jamais vencido por moleque algum, e cuja temeridade pensa ser sua maior virtude; aquele que fez desandar de medo o Zarolho e o Zeca Malandro, pequenos marginais temidos pela garotada do bairro; quem, junto com o Aristeu, batera sem dó no Cicatriz, no Peru e no Correia, bando da Rua Marques Leão; que enfrenta tipos com o dobro de sua idade e tamanho; que na saída da velha Escola Estadual Maria José acertara contas com grandalhões que malharam algum amigo seu; enfim, o Zé, tipo do cara que nunca leva desaforo para casa e encarara árduas vicissitudes da vida com fortaleza incomum – exceto a matemática –, jaz ali estatelado no chão qual escória ou peru bêbado na véspera do Natal... E agora, rapaz!?... Quem te viu e quem te vê, não?! Já pensou, velhão, o que diria a turma lá do Bixiga, vendo você assim? Que papelão... Dá até vergonha de revelar que o conheço, meu caro... É o aniquilamento, a desonra! Oh, desditada vida, quanta ignomínia! Quem diria...

Confuso, ao voltar lentamente a si, o Zé ouve lá longe as vozes dos que ao seu lado confabulam:

Então, doutor, ele vai melhorar?

(...)

Desalinhado, o garoto põe-se em pé. O teto volta a girar; a mão esfria. Cai sentado no catre. Respira fundo; aguarda uns minutos. Sente as pernas firmarem e ergue-se. Grato, despede-se das gentis senhoras e parte todo jururu. Ao ultrapassar a soleira da porta ouve a derradeira advertência ou tiro de misericórdia:

Meu benzinho, você deve voltar daqui a quinze dias para tomar a segunda dose, viu? Não esqueça, tá!? Senão a primeira aplicação perderá o efeito!

Um suspiro lento, profundo, e um sim com a cabeça é a resposta do Zé: faltam-lhe forças para juntar ânimo de protesto. Apenas, como augúrio inevitável, pressente espessas nuvens de dissabores abarreirarem-se no horizonte das duas próximas semanas. Agradece a triste recomendação e sai. A dor no ombro direito é sinal evidente de que a experimentada enfermeira – escolada desses tipos durões que se desmancham frente uma ridícula agulha – aplicara-lhe a injeção mesmo estatelado no solo.

(...)

Oh, que duas semanas penosas; oh, que quinze dias fatídicos! Cada folhinha destacada do calendário pendurado na parede da cozinha oprime o coração do Zé. É um sentenciado abeirando-se ao dia do paredão. Sua decisão de tomar a segunda dose varia a cada instante de um rotundo e peremptório “não vou nem a pauladas”, até um frouxo e bordejado “acho que vou”. Horas depois está resolvido a não ir, e depois de horas a ir. E assim permanece enredado em desejos contrários, e em contrários desejos está.

Por fim, irrompe o dia marcado. Que paúra! Acordou com um rotundo e monolítico – “Não vou; questão fechada”. Até às dez horas da manhã, mudara de parecer dezoito vezes. Contudo, aproveitando o tempo de almoço, lá foi o Zé ao posto de saúde. Que valentia incomum! Enfrentou o árduo dever com maturidade.

(...)

Ao chegar no casarão amarelo da saúde, sua fértil imaginação o fez sentir-se alvo de chacotas e olhares trocistas das enfermeiras, que pareciam lhe dizer: – “Olhem aí, o valentão chegou!”. Que opróbrio! Com faces abrasadas, quase voltou. Envergonhado do pretérito papelão, dirige-se humilde e servilmente à enfermeira gorda que já o conhecia muito bem:

Oi, dona enfermeira!

Como vai, garoto? – a voz dela é maternal.

Mais ou menos...com medo... A senhora acha que é mesmo pra tomar essa segunda dose?

Precisa sim, filhote.

O Zé cala-se, respira fundo e dá um tempo. A enfermeira inicia o preparo da seringa, já não mais sob o olhar curioso do moleque, que resolve pôr-se de costas, a fim de contar os buraquinhos da centenária parede do casarão.

Ainda de costas, com tímida voz, novamente interpela:

Dona, será que... Será que a senhora poderia aplicar a injeção aqui atrás – apontando justamente para aquele setor de carnes fartas também alcunhado de pousadeiras.

Está bem; abaixe a calça.

Volta-se lentamente para a senhora:

Sabe, dona enfermeira, se eu pudesse me deitar naquela maca – ruboriza-se com a lembrança do desmaio – acho que não me esborracharia de novo – e sem saber onde por as mãos, desvia o olhar para o assoalho e impede com o bico do tênis a passagem de uma formiga.

A enfermeira ri e lhe aponta a maca. O Zé abaixa a calça e um tiquinho do calção. Deita-se e prende a respiração para evitar o cheiro do éter, emoliente dos seus ossos. Enterra o rosto no travesseiro e se enrijece feito dormente de concreto. A enfermeira vendo músculos tão contraídos e em atitude de defesa e pavorosa expectação, sabe que não será possível fincar-lhe o delicado espeto. Utiliza, então, especial técnica para tais casos: finge introduzir-lhe a agulha cutucando com o dedo a nádega do Zé, que distende-se certo de que tudo acabara, quando então plac!, enterra-lhe a fina haste de aço.

Ui! – contrai-se novamente.

Relaxe, relaxe, garoto. Pronto, pronto. Viu só, acabou e não doeu nadinha – a seringa ainda cravada nas carnes vai pela metade da dose.

Puxa, não desmaiei!... Não desmaiado, , enfermeira?

Nesse momento retira a agulha:

Não. Você está forte como um touro! Pode levantar.

Caramba, como diz minha avó, não me desmilingui!

A funcionária se despede e volta à fotonovela.

Ao levantar da maca, o Zé padece ligeira tontura. Torna a sentar-se e respira fundo. Aguarda um momento e ergue-se senhor absoluto dos quatro pontos cardeais, que pode apontá-los sem pestanejar.

Missão cumprida! Batalha vencida! Depositar a derradeira pedra e ultimar a obra iniciada, mais se é árdua, plenifica o espírito de alegria. Viva a vida! O Zé sente-se o herói da batalha do último filme. Agradece as funcionárias com ar de valentão e, expandindo-se seguro de si, pergunta se deveria retornar para uma terceira dose. Informado ser desnecessário – coisa que bem sabia, e como! –, faz cara de resignado e parte.

Famílía em Contos: os Larletos, de Ariovaldo Esteves Roggerio (Editora Cultor de Livros, São Paulo, 2009)

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